"A Criação da Feminilidade Bíblica" por Beth Allison Barr.

Rebeca Maluf
12 min readMay 5, 2021

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Alguns dias atrás, eu vi no Twitter alguns posts sobre um livro chamado "The Making of Biblical Womanhood". Por alguns comentários que eu li, deu para entender que o livro era, basicamente, sobre fatores históricos que levaram a atual construção da ideia de feminilidade bíblica; mostrando, então, que a tal feminilidade bíblica não é, de fato, bíblica. Pessoas que me conhecem, por essa breve descrição que eu dei, já conseguiriam imaginar que eu fiquei interessada desde o momento que entendi o aparente propósito do livro. Não estariam errados. Entrei na Amazon, encontrei o livro, coloquei no carrinho e esperei. Esperei me decidir sobre uma outra compra que já estava planejando para não ter que pagar o frete. No final da última semana, eu me decide e o livro chegou um dia antes do previsto (no mesmo dia que estou, pelo menos começando, a escrever este texto).

Postei no Twitter uma foto do livro e duas pessoas que já me interagi na rede me pediram para falar sobre; e tenho que dizer que isso me fez me sentir muito feliz e mais empolgada ainda para ler "The Making of Biblical Womanhood". Por enquanto, só li a introdução, mas eu precisava comentar. Então, atendendo a pedidos (nem acredito que estou mesmo falando isso) e a vontade que surgiu em mim por causa deles, estou aqui para dar o meu parecer sobre essas primeiras páginas. Quero contar e explicar o que Barr pontua, obviamente, mas quero também me colocar na narrativa; principalmente depois de ler a explicação para a escrita do livro que ela deu na introdução. Porém, é importante eu deixar registrado aqui que o livro é em inglês (não tem tradução em português), então, imagino eu, que terão momentos que eu terei que falar de expressões que fazem mais sentido em inglês (assim como outras fazem mais sentido na língua portuguesa). Consequentemente, se eu achar que o caso pede, eu apontarei a expressão usada pela autora (para aqueles que sabem inglês e, assim, agregar na experiência da leituras dessas minhas resenhas) e a tradução que eu achar mais apropriada. A mesma regra se aplica para quando eu for citar trechos do livro. Farei uma tradução e copiarei o trecho no original, para aqueles que podem usufruir da língua na qual o livro foi escrito.

Sem mais delongas, meu parecer sobre a introdução começa a partir daqui.

Barr começa falando que nunca quis ser uma ativista. Ela veio de um contexto de uma igreja Southern Baptist (Batista do Sul) em uma cidade pequena do Texas que pregava os papéis divinos ordenados para mulheres. Para reconhecer o quanto de informação a autora nos deu apenas por essas poucas palavras, é necessário (e suficiente) saber um pouco sobre a convenção da igreja que ela citou. Um breve resumo seria: Southern Baptist Convention (Convenção Batista do Sul) surgiu na época da guerra civil dos Estados Unidos, na qual o Norte já era contra a escravidão, diferente do Sul. É importante destacar que as igrejas defenderam a escravidão de pessoas negras usando versículos bíblicos. As igrejas do Norte já tinham passado dessa terrível e nojenta fase, mas as do Sul não. Então, a tal convenção surgiu com o propósito de defender a instituição da escravidão. O artigo "O Problema do Supremacismo Branco do Cristianismo Americano" ("American Christianity's White Supremacy Problem"), escrito por Michael Luo, explica sobre esse processo histórico e talvez seja interessante destacar um parágrafo do texto (o link para o artigo em inglês estará depois do final deste texto).

"Depois da derrota do Sul na Guerra Civil, líderes da 'Southern church' lutaram para ajudar seus membros verem sentido da perda deles. O resultado foi uma religião da 'Causa Perdida', a mitologia que enobreceu a Confederação e idealizou o Sul pré-guerra como um bastião da piedade e moral cristã. Essa fusão de valores religiosos e culturais, que veio dos púlpitos, ajudou a legitimar a ordem social que continuou a subjugar pessoas negras. Mais tarde, como o cristianismo evangélico, firmado no Sul, cresceu para se tornar uma expressão dominante do cristianismo na America, sua cultura, enraizado na supremacia branca, se espalhou. Durante a era do Jim Crow, quando os 'Southern' estatutos aumentaram a rígida separação das raças e restrições dos direitos de pessoas negras, igrejas protestantes do norte continuaram segregadas e mudas em suas críticas. Muitos cristãos brancos viram a segregação simplesmente como parte do plano de Deus para a humanidade."

"After the South’s defeat in the Civil War, Southern church leaders struggled to help their congregants make sense of their loss. The result was the religion of the Lost Cause, a mythology that ennobled the Confederacy and idealized the antebellum South as a bastion of Christian piety and morals. This fusion of religious and cultural values, delivered from the pulpit, helped to legitimize a social order that continued to subjugate Black people. Later, as evangelical Christianity, anchored in the South, grew to become the dominant expression of Christianity in America, its cultural scaffolding, rooted in white supremacy, spread as well. During the era of Jim Crow, when Southern statutes enforced the strict separation of races and restricted the rights of Black people, Northern Protestant churches remained largely segregated and muted in their criticism. Many white Christians saw segregation as simply part of God’s plan for humanity."

Hoje, a convenção já pediu desculpas pelo seu passado (defensor da desumanização de pessoas negras com a escravidão e com a segregação racial). Mas eu, e acho que qualquer pessoa que se preze, creio que ela deveria fazer muito mais, considerando que os Estados Unidos ainda é um país muito racista e com muita violência policial. A Southern Baptist Convention (Convenção Batista do Sul) deveria estar na linha de frente como aliados a luta do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), mas, em vez disso, as pessoas de dentro dela apoiaram em massa o ex presidente Donald Trump; que negou condenar um grupo de supremacistas brancos que o apoiaram durante os debates das eleições de 2020 contra o atual presidente Joe Biden.

Atualmente, mesmo ainda não tendo se posicionado com ações a favor da luta de pessoas negras e ter apoiado um presidente conhecido (entre outras coisas) pelo seu racismo, a grande bandeira levantada pela convenção é da misoginia com o nome da teologia complementarista. Acredito que Barr explicará em algum ponto do livro com mais detalhes o que é essa teologia, mas, para adiantar, basicamente é a ideia de que homens e mulher são iguais (mesmo que as práticas de complementaristas não provem essa suposta crença), mas eles têm papéis complementares; homem como líder e mulheres como auxiliadoras. Porém, com essa teologia vem a ideia da feminilidade bíblica, que a autora já pincela na introdução. A ideia de que mulheres devem ser submissas, mães e donas de casa; tais coisas sendo as suas funções mais importantes. Isso não significa que a maioria dos complementaristas são contra mulheres terem emprego, mas veem isso como um extra, que não pode entrar no caminho de suas principais funçōes.

Beth Moore, popular professora bíblica e autora, era parte da convenção e a deixou este ano (2021). Deixarei o link para uma matéria falando sobre no final também, mas, basicamente, ela saiu pela retaliação que sofreu pelas críticas que fez ao Trump por seu comportamento e falas tóxicas para com mulheres. (É interessante, mas não surpreendente, o apoio das pessoas de dentro das igrejas dessa convenção ao Trump. Duas de suas maiores marcas são, também, grandes marcas da convenção: racismo e misoginia).

Fiz um parenteses bem grande sobre o primeiro tópico, mas é uma informação importante para melhor entender o contexto que Barr esteve presente, e, imagino, outras coisas no resto do livro. Antes, porém, de continuar sobre o que já foi pontuado na introdução do livro, quero me colocar na discussão desse primeiro tópico. Talvez, pelas minhas críticas, dê a impressão que eu ache que nenhuma igreja da convenção presta; o que não é o caso. Eu faço parte de uma. Eu moro em Orlando, Flórida, e congrego na First Baptist Church of Orlando, além de estar cursando Estudos Bíblicos em um seminário da convenção (New Orleans Baptist Theological Seminary). Tenho imensas críticas, sobre assuntos que considero gravíssimos, em relação a Southern Baptist Convention (Convenção da Batista do Sul); como, por exemplo (além dos que eu já citei) não reconhecerem o pastoreio feminino (algo que eu não classifico como discordância teológica, mas como uma falta grave para com metade, ou mais da metade, do corpo de Cristo). Porém, eu venho de uma batista renovada do Brasil que, mesmo reconhecendo o pastoreio feminino, foi o lugar que eu ouvi várias coisas machistas serem pregadas com a Bíblia como suporte para tais falas. Na igreja que faço parte hoje, pelo menos, eu não vejo pregações misóginas serem feitas. Por enquanto, no momento que estou na minha vida, está sendo bom congregar lá.

Voltando para a introdução do livro, Barr já começa a dar um certo contexto para o complementarismo e seus ideais. Ela cita algumas pessoas e suas falas para com a tal ideia de feminilidade bíblica, como, por exemplo, James Dobson com seu livro Love for a Lifetime. A autora começa a contar como que aconteceu a formação de tais princípios na vida dela, desde esse livro, até pregações, estudos bíblicos e devocionais. A primeira citação que quero fazer vem logo após essa parte, na página 2.

"Mulheres foram feitas para desejar seus maridos e deixar eles governarem (Gênesis); mulheres devem confiar em Deus e esperar por um marido perfeito (Rute); vozes dos homens eram públicas, enquanto vozes das mulheres eram privadas (1 Coríntios; 1 Timóteo); quando mulheres tomavam o comando, era ou pecaminoso (Eva) ou porque homens tinham falhado em fazer o trabalho deles (Débora). A posição de uma mulher era apoiadora e segundaria, a menos que ela tinha que temporariamente assumir a liderança quando homens não podiam."

"Women were made to desire their husbands and let them rule (Genesis); women were to trust God and wait for their perfect husband (Ruth); men's voices were public, while women's voices were private (1 Corinthians; 1 Timothy); when women did take charge, it was either sinful (Eve) or because men had failed to do their jobs (Deborah). A woman's position was supportive and secondary, unless she had to temporarily step into leadership when men could not."

Talvez, uma das coisas mais interessantes sobre esse trecho é o quanto ele fala sobre o discurso misógino de dentro da igreja. Essa forma de entender tais passagens não é a correta, um pouco de estudo sério considerando exegese e hermenêutica faz com que uma pessoa perceba a distorção. Distorção essa que vem de uma cultura patriarcal que faz com que homens, que estão no topo do patriarcado (ainda mais quando são brancos, considerando que vivemos em uma sociedade formada por supremacia branca também), interpretem de forma errada tais menções bíblicas às mulheres. Se não vivêssemos em tal sociedade machista, teríamos visões completamente diferentes sobre tais textos da mesma forma que se não vivêssemos em uma sociedade supremacista branca não colocaríamos Eva e Adão como brancos.

E é aqui que farei minha maior pontuação até o momento: minha própria experiência com o complementarismo. Barr fala sobre a dela e já comentarei sobre o que ela contou, mas a minha história tem muita semelhança com tal citação que acabei de fazer.

Lembra que eu comentei que na igreja que eu congregava no Brasil, mesmo reconhecendo o pastoreio feminino, eu escutei muita coisa machista? A primeira veio quando o pastor da igreja me contou que igrejas batistas não reconhecem mulheres como pastoras. Aquilo foi um choque para mim. Antes, eu fazia parte de uma igreja sem denominação na qual eu comecei a exercer atividades ministeriais, como tocar no louvor do culto de adolescentes e fazer minha primeira pregação. Foi nessa igreja que eu ouvi, pela primeira vez, que eu teria um chamado para ser pastora. Eu nunca tinha cogitado que existia uma conversa sobre gênero em relação a esse ministério, então, quando aquele pastor falou aquilo, eu fiquei em choque. Não por acreditar nele, mas porque aquilo não fazia sentido nenhum na minha cabeça. Eu tinha quinze anos, ou seja, não tinha um décimo (sendo gentil com minha versão de quinze anos) do conhecimento bíblico que tenho hoje (sendo gentil com minha atual versão). Eu peguei meu celular e pesquisei por argumentos de que mulheres podem sim ser pastoras (e aí que o problema habita: na palavra "pode" e na ausência da expressão "recebem o chamado"). Eu lembro de dois argumentos, um defendendo o pastoreio feminino e outro negando: ambos terríveis. O que defendia citada a passagem sobre o "ide", o chamado de todo cristão para pregar o Evangelho; a pessoa argumentava que não tinha especificação de gênero. O problema é que ninguém estava questionando se mulheres podem evangelizar. O argumento da oposição argumentava que, como nenhum dos doze discípulos eram mulheres, então nós não podemos pregar/ ser pastoras. Fala que demonstra uma enorme falta de leitura básica dos quatro evangelhos, que citam mulheres que foram discípulas de Cristo, mesmo que não as mencionamos dentro de um número.

Nos anos que seguiram isso, eu escutei falas machistas acerca da dinâmica que um casamento cristão deveria ter. A consequência disso? Eu criei um trauma emocional. Como eu não tinha conhecimento bíblico o suficiente (como uma adolescente que não tinha igualitaristas (contrário de complementarista) por perto), eu não conseguia rebater com firmeza e consistência para mim mesma tais interpretações dadas sobre as passagens bíblicas usadas. Eu fui dormir várias noites chorando questionando Deus se aqueles homens estavam certos; porque, se estivessem, mulheres teriam sido criadas inferiores (literalmente como "o segundo sexo") e não valeria a pena casar. Até um ano atrás, se eu ouvisse alguém pregando certas passagens com uma lógica, por menor e mais sútil que fosse, complementarista, eu choravam (não em público. Às vezes, falhava na tentativa). Só de falar sobre, eu sentia meus olhos encherem d'água. Hoje, graças a Deus, eu consegui adquirir conhecimento o suficiente para ter a convicção, não apenas por saber que não faria sentido tais interpretações, mas por real entendimento bíblico de tais passagens, de que mulheres não são inferiores a homens ou segundas para com eles na Criação. Que nós não só podemos mas devemos exercer liderança nos nossos ministérios quando temos chamado para tal.

Com isso, quero que a igreja passe a reconhecer os traumas emocionais que mulheres desenvolvem por conta da misoginia pregada. Mesmo que não o suficiente, temos cristãos que reconhecem o trauma emocional que LGBTs desenvolvem por conta da homofobia e transfobia presentes dentro da igreja e os crentes que sabem um pouco de história da igreja sabem da dívida para com pessoas negras. Mas os reconhecimentos de que (1) complementarismo nada mais é que patriarcado e (2) que tal teologia fere mulheres emocionalmente e fisicamente também não são comuns o suficiente; tais ideais são chamados apenas de diferenças teológicas.

A experiência compartilhada por Barr é um pouco diferente. Ela fala que a vida dela convivendo com ideias complementaristas durou quarenta anos até que um dia isso mudou. Ela deixou a igreja que ela congregava depois de três meses que o marido dela foi demitido do trabalho dela de pastor dos jovens. O motivo? O marido dela desafiou a liderança da igreja no que cerca o problema de mulheres no ministério. E se você pensa que isso aconteceu muitos anos atrás quando tudo era ainda pior, você talvez se surpreenda ao saber que isso aconteceu em 2016 (ironicamente, o ano que o Trump foi eleito). Não foi falado para aqueles que ficaram tristes com a saída do marido da Barr o motivo, ficou encoberto. Alguns amigos os ajudaram nesse momento difícil, o que fez ser uma transição um pouco menos turbulenta. Porém, aquilo foi o que a abalou emocionalmente o suficiente para ela querer sair daquele contexto.

Ela conta sobre o sentimento de culpa por ter ficado calada mesmo sabendo já sobre as falhas e erros do pensamento complementarista. Ela diz que tinha esperança que as coisas melhorassem, que ela deveria apenas continuar lá já que estava confortável, temia que o marido perdesse o emprego (o que acabou acontecendo), amava a vida do ministério de jovens e os amigos, etc. Ela fala sobre como ficou em silêncio e considera esse o erro que cometeu. Outro trecho interessante para se destacar é o da página 9:

"Porque eu sou cristã, porque eu carrego o nome de Cristo, o nome dele é meu nome. Cristãos como Paige Patterson são culpados pelo que eles fizeram. Mas porque Patterson o fez no nome de Jesus, e porque outros cristãos ficaram em silêncio, a culpa dele é nossa culpa também. Eu já sabia isso."

"Because I am a Christian, because I carry the name of Christ, his name is my name. Christians like Paige Patterson are guilty for what they have done. But because Patterson did it in the name of Jesus, and because fellow Christians stayed silent, his guilty is our guilty too. I knew this."

Ela, então, explica que ela espera que a experiência dela e as evidência que ela apresentar como uma historiadora, que acredita no nascimento, morte e ressurreição de Cristo, possam fazer diferença para as mulheres e homens que ela ama e para aqueles que estiverem lendo o livro.

Pessoas já me perguntaram porque eu ligo tanto para essas questões que cercam mulheres. Penso que a resposta deveria ser óbvia, já que todos deveriam se importar. Meu motivo é o sofrimento que passei e o quanto eu quero que essa realidade mude. Para Barr foi a gota d'água que ela teve com a demissão do marido e o sentimento de culpa que veio por ter ficado calada. Sou grata por mulheres como ela e várias outras que estão dando suas contribuições para uma mudança. Ela termina assim na página 10:

"Isso é o que mudou minha mente. Talvez isso vá mudar a sua também."

"This is what changed my mind. Maybe it will change yours too."

Eu li e estudei parte do que já temos para saber que mulheres e homens são iguais e ponto. Não iguais, mas diferentes. Portanto, faço as últimas palavras dela da introdução as minhas também.

Bibliografia:

Barr, Beth Allison. The Making of Biblical Womanhood: How the Subjugation of Women Became Gospel Truth." Brazos Press, 2021.

Luo, Michael. "American Christianity’s White-Supremacy Problem:
History, theology, and culture all contribute to the racist attitudes embedded in the white church." The New Yorker. https://www.newyorker.com/books/under-review/american-christianitys-white-supremacy-problem. Acessado em 5 de maio de 2021.

Smietana, Bob. "Beth Moore Says She’s No Longer Southern Baptist: The popular Bible teacher, author, and advocate for abuse victims decides to leave the denomination that used to be her “safe place.” Christian Today. https://www.christianitytoday.com/news/2021/march/beth-moore-leave-southern-baptist-sbc-lifeway-abuse-trump.html. Acessado em 5 de maio de 2021.

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